Wirecard: entenda o escândalo da maior fintech da Alemanha

Há um mês era a melhor entre as melhores 30 empresas cotadas na Alemanha. Mas hoje seu nome é ligado a destruição de um valor acionário entre 16 e 20 bilhões de euros (cerca de R$ 96 – 120 bilhões). É o escândalo Wirecard, o caso da maior fintech alemã, que abalou a confiança dos mercados europeus e provocou um terremoto econômico mundial.

Esse colosso dos pagamentos online garantia as transações de outros gigantes, como Vodafone, Telefonica e Sky Deutschland e o time do Bayern de Munique. Processava 125 bilhões de euros de pagamentos de cartões de crédito e débito das bandeiras Visa e Mastercard e chegou até a emitir cartões próprios. Em poucos anos, a empresa fundada pelo engenheiro de computação austríaco Markus Braun se tornou uma concorrente poderosa de  Paypal e Western Union.

Seu modelo de negócios, em resumo, parecia simples: garantir pagamentos online coletando um prêmio sobre os riscos. Mas, na verdade, a Wirecard acabou se envolvendo em uma série de crimes corporativos que levou a empresa a quebrar de forma repentina.

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Com a agravante que a Bundesanstalt für Finanzdienstleistungsaufsicht (Autoridade Federal de Supervisão Financeira, mais conhecida por sua abreviação BaFin), a Comissão de Valores Mobiliários (CVM) da Alemanha, demorou anos para perceber as irregularidades. Gerando uma série de dúvidas sobre sua capacidade de atuar na regulamentação do mercado de capitais alemão, e até acusações de incapacidade, omissão ou até cumplicidade com esses crimes.

Como começou o escândalo Wirecard

A Wirecard foi fundada há 20 anos atuando como “PSP”. No começo faturava ajudando sites pornográficos e de jogos de azar a recolher pagamentos com cartões de crédito.

Uma atividade apreciada pelos analistas financeiros por sua “natureza estável”, que levou a fintech a sobreviver ao fim da Bolha da internet.

Em 2005 abriu seu capital na Bolsa de Valores de Frankfurt e começou a voar: de 2009 até 2018 alcançou uma valorização de 3115%. No mesmo período, as empresas cotadas no índice DAX 30 chegaram a uma valorização de “apenas” 119%. E o índice tecnológico Tecdax somente 382%.

Saiba mais: Wirecard faz Alemanha reforçar regulamentação financeira

O grupo conquistou mais de 300 mil clientes em 20 países, contando com 5.800 funcionários,  2,2 bilhões de euros de receita e 347 milhões de euros de lucro líquido. Chegou a assinar acordos com empresas como Alipay e WeChat, além da Apple e Google, para operar como intermediário das compras ocorridas em seus sites.

Markus Braun chegou a ser chamado pela imprensa local do “novo Steve Jobs da Alemanha”.

Nesse período começam as primeiras compras de outras empresas na Ásia, graças a uma base operacional aberta em Cingapura. Mas sempre com um nível de transparência muito baixo.

Em 2015 o jornal britânico Financial Times começou a publicar uma série de matérias com o título “House of Wirecard”, onde eram denunciadas irregularidades contábeis da empresa. O veículo chegou a calcular um possível rombo de 250 milhões de euros nas contas da Wirecard. Mas ninguém fez nada.

Na Alemanha essas acusações foram interpretadas como investidas dos concorrentes britânicos,  que atacavam uma fintech alemã, considerada a joia da coroa do mercado teutônico.

No mesmo ano, o Financial Times foi vendido pelo grupo Pearson para os japoneses da Nikkei. Mais um alarme disparou sobre as contas da Wirecard. Alguns relatórios de fundos indicaram que as operações da fintech na Ásia estão artificialmente infladas.

Em 2015, a Wirecard comprou o Great Indian Retail Group, empresa indiana de comércio e pagamento eletrônicos, por 350 milhões de euros. A maior aquisição já feita pela fintech alemã.

Uma operação construída com a intermediação de um misterioso fundo das ilhas Mauritius. Que acabou na mira dos repórteres do Financial Times, que analisaram a venda, ouviram as fontes locais envolvidas na operação e chegaram à conclusão de que o valor real da Gi Retail não superava os 100 milhões de euros. O restante teria sido desviado ou utilizado para aumentar artificialmente a receita da controladora. Mas na Alemanha ninguém se mexeu.

Enquanto isso, a fintech superou o tradicional banco Commerzbank do índice DAX 30. Com isso, conseguiu entrar automaticamente nas carteiras dos grandes fundos internacionais, que investem somente em índices ou ações de grandes empresas consolidadas.

O valor de mercado da empresa chegou ao mesmo da Deutsche Bank, primeiro banco alemão. Só que sua receita e o número de funcionários eram 15 vezes menores.

Ninguém fez muitas perguntas sobre as contas da Wirecard, pois todos consideravam como certo que o sistema de controle do mercado de capitais alemão funcionasse e garantisse a regularidade das contas das empresas cotadas.

Entretanto, em 2016 um grupo de operadores do mercado financeiro europeu, sob o pseudônimo de “Zatarra”, que estavam vendidos em ações da Wirecard, publicaram um documento em que acusaram empresa de lavagem de dinheiro. Nesse caso alguém fez algo: eles mesmos acabaram sendo investigados pela BaFin por suposta manipulação do mercado.

Além disso, uma empresa de investigações particulares começou a perseguir os jornalistas do Financial Times que seguiam o caso da fintech alemã.

Mas a coisa mais incrível é que para a empresa de revisão de contas da Wirecard, o colosso internacional Ernst & Young (EY) que verifica os balanços da empresa desde 2009, não haveria nenhum problema à vista.

A fintech assegurava todo o mundo sobre sua solidez líquida indicado um depósito de 2 bilhões de euros guardados nos cofres do Bank of the Philippine Islands e no Banco de Oro Unibank. Recursos administrados por um gestor sediado na cidade de Makati, próxima da capital das Filipinas.

Foi assim que nos últimos anos Wirecard começou a obter empréstimos cada veis mais volutuosos por parte de grandes bancos internacionais.

Mas o Financial Times insistiu e continuou publicando matérias sobre supostas irregularidades, apresentando uma série de documentos cada vez mais detalhados.

O jornal chegou a denunciar o caso de Antonio Agostin, um marinheiro aposentado do vilarejo de Cabanatua, no norte das Filipinas, cuja casa – onde morava junto com 12 familiares – era a sede legal da ConePay International, empresa que atuava pela Wirecard na Ásia.

Dessa vez a BaFin fez algo: proibiu as vendas a descoberto, alegando uma possível “séria ameaça à confiança do mercado” e a “importância do Wirecard para a economia”. Mas não tomou nenhuma medida mais incisiva contra a fintech ou seus executivos.

Derrocada em 2020

Quando, em maio de 2020, finalmente a Ernst & Young pediu à Wirecard as provas da existência dos 2 bilhões de euros de garantias, o escândalo de fato se tornou público: o dinheiro simplesmente não existia.

Saiba mais: Wirecard apresenta pedido de insolvência após fraude contábil

No dia 16 de junho, os bancos das Filipinas informam que os documentos eram falsos. No mesmo dia as ações passaram de 104,50 euros para cerca de 2 euros. A maior queda na história da Bolsa de Valores alemã em um único dia.

As instituições financeiras europeias e americanas imediatamente suspenderam as linhas de crédito para a Wirecard. E a fintech se tornou insolvente. A agência de classificação de risco Moody’s decidiu retirar seu rating por falta de informações contábeis.

A BaFin decidiu apresentar uma denúncia criminal, e Makus Braun foi preso. “O escândalo Wirecard é um completo desastre e uma vergonha”, chegou a declarar naquela ocasião Felix Hufeld, presidente da BaFin.

Saiba mais: Ex-CEO da Wirecard, Markus Braun, é preso novamente por fraude

Foi somente nesse momento que se começou a verificar a veridicidade das contas da Wirecard. Por exemplo, uma auditoria especial da KPMG mostrou que até metade das vendas da fintech poderia ter ter sido inventada.

Atualmente, o Ministério Público de Munique está investigando a empresa e sua diretoria por fraude contábil, falsificação de balanços e insider trading. A Comissão Européia também está verificando o papel de BaFin. E a própria Ernst & Young está no olho do furacão.

Isso pois ao longo de toda a vida da Wirecard ocorreram inúmeras irregularidades, impossíveis de serem ignoradas pelas autoridades de controle do mercado de capitais e pelos revisores das contas.

Por exemplo, no momento da listagem na Bolsa de Valores de Frankfurt, Braun usou um “envelope” corporativo de um call center para evitar o incômodo de apresentar documentos e prospectos obrigatórios para uma Oferta Pública Inicial (IPO, na sigla em inglês).

Três anos depois, em 2008, uma associação de acionistas alemães denunciou a existência de irregularidades nas contas da Wirecard. Ernst & Young, que ainda não era formalmente o revisor das contas da empresa, foi contratada para realizar uma auditoria especial.

Só que essa auditoria acabou em nenhuma sanção para a Wirecard. Mas um dos líderes da associação dos acionistas acabou ele mesmo denunciado e condenado a um ano de prisão por não ter declarado de forma correta no imposto de renda suas posições na empresa. E menos de um ano depois a Ernst & Young se tornou a revisora das contas da fintech.

Um duro golpe na suposta superioridade alemã no rigor e na eficiência. E que pode se repercutir na confiança que os grandes fundos pensão dos EUA e da Ásia têm no mercado europeu.

A fintech tem uma dívida de 2 bilhões de euros com 16 bancos internacionais, que provavelmente jamais será paga. Por isso, o CEO da Deutsche Bank, Christian Sewing, declarou “é claro que esse é um problema que envolve todos nós”.

Veja também: Wirecard: ministro de finanças alemão sabia da manipulação de mercado

Um dos maiores investidores da Wirecard é o grupo japonês Softbank, que tinha injetado na empresa 1 bilhão de euros em investimentos. E que agora terá que enfrentar mais um problema em sua carteira, após outros investimentos mal sucedidos, como Uber e WeWork.

Carlo Cauti

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