Desglobalização: o mundo pós-coronavírus?

Em 31 de dezembro de 2019, quando a Organização Mundial da Saúde (OMS) emitiu o primeiro alerta sobre o novo coronavírus (Covid-19), poucos imaginavam o impacto que a doença causaria a nível global.

A pandemia originada em Wuhan, na província de Hubei, na região central da China, afetou praticamente todos os países do planeta, em menor ou maior grau, no que tange à economia e os sistemas de saúde. O coronavírus fez com que o mundo, globalizado como nunca, entrasse em calamidade mundial, com quase três milhões de pessoas infectadas em poucos meses.

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Por tratar-se de uma doença de rápido contágio, o isolamento social ou as medidas de quarentena, por vezes de forma coerciva, foi a saída para mitigar os efeitos na saúde pública de diversas nações. No entanto, isso fez com que praticamente todas as cadeias produtivas do planeta inteiro sofressem uma drástica ruptura, seguida da queda do poder de compra e princípios de graves recessões econômicas.

A interdependência entre os países, sobretudo os mais abertos economicamente, agravou esse efeito. Os de economia mais restrita, por sua vez, sofreram com a falta de insumos e com a dificuldade de acesso ao mercado externo.

Donald Trump, com sua eleição à presidência dos Estados Unidos, a saída do Reino Unido da União Europeia (UE), até a força de Marine Le Pen na política francesa, são sinais do presente fortalecimento do nacionalismo nas nos países mais poderosos do planeta. Dado que a complexa globalização foi um dos catalisadores da crise iniciada pela pandemia, muitos se perguntam: como será o mundo no pós-coronavírus?

O mundo pós-coronavírus

Paulatinamente, economias de alguns países passaram a serem reabertas, após os governos entenderem que os efeitos imediatos do coronavírus já foram mitigados e que a doença já está sob controle dentro de suas fronteiras.

São Paulo, cidade mais populosa da América Latina, deveria cessar sua quarentena a partir do dia 11 de maio, com uma reabertura gradual. O estado representa cerca de 28% do Produto Interno Bruto (PIB) do Brasil. Nos Estados Unidos, Trump já apresentou um plano de retoma da economia norte-americana, ainda que sob críticas.

Na Alemanha, no entanto, a chanceler Angela Merkel demonstrou preocupação com a reabertura da maior economia da Europa e advertiu os governadores regionais. Para ela, o país corre o risco de arruinar os bons resultados no combate à pandemia ao promover uma “reabertura rápida”.

De todo modo, seja qual for a visão sobre o processo e quando da realização da retomada das atividades normais do país, a economia global terá consequências pelos próximos anos. Segundo o Fundo Monetário Internacional (FMI), o coronavírus fará com que o PIB global cairá 3% neste ano.

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Caso isso se confirmar, será o pior desempenho do mundo desde a Grande Depressão, ocasionada pela crise de 1929. Para o Brasil, a expectativa do FMI é pior ainda, com uma contração de 5% da atividade econômica, o que seria o pior desempenho desde 1901.

Segundo o Fundo, a América Latina poderá apresentar “nenhum crescimento” entre 2015 e 2025, sendo uma década perdida, com uma redução de 5,2% na economia da região. Tratando-se de países que historicamente possuem entraves políticos, a condição de nações emergentes – ou de terceiro mundo – levará a uma crise sem precedentes.

Com a China não foi diferente. No primeiro trimestre deste ano, a atividade econômica do país caiu 6,8% em relação a 2019. Foi a primeira vez que a segunda maior economia do planeta se contraiu em um trimestre desde 1992, quando o governo começou a divulgar números trimestrais.

Passada a “novidade da existência” de um novo vírus, os países passam a procurar respostas para a nova realidade e caminhos para onde seguir após seus impactos.

Segundo o professor de Relações Internacionais especialista em Europa da Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM), Demétrius Pereira, em entrevista ao SUNO Notícias, devido o vírus que assola o planeta ter, supostamente, surgido na China, a relação entre a UE e o país asiático poderá ser abalada sob dois aspectos.

Demétrius relata que o parlamento europeu já proferiu acusações ao governo chinês sobre a falta de diligência e transparência no tratamento da doença logo em seu início. Partidos políticos de alguns países na Europa tentam criar certo afastamento com a China, até alegando que o vírus possa ser uma criação laboratorial do país.

A suposição ganhou corpo, e o vencedor do prêmio Nobel de Medicina de 2008, Luc Montagnier, disse que diferentemente do que as autoridades divulgaram, o coronavírus foi fabricado artificialmente em um laboratório chinês. As declarações foram realizadas no dia 17 de abril para a rádio francesa “Frequénce Médicale”.

Montagnier disse que os chineses estariam desenvolvendo uma vacina contra a Aids, e usaram um coronavírus – possivelmente o encontrado em morcegos – para isso. “A história que veio de um mercado de peixes é uma lenda”, disse.

Para o professor especialista em Ásia da ESPM, Alexandre Uehara, “o que temos no primeiro momento, é que, de fato, o governo chinês local, na província de Hubei, atuou para que não houvesse o conhecimento sobre a doença”.

“Meses depois, a partir de janeiro, o governo central da China tomou as rédeas da situação transmitindo mais informações, até por uma preocupação em relação à repercussão negativa ocorrida na Sars (2003), quando houve demora no relato das informações sobre a doença”, disse o Uehara.

Uehara afirma que “vê o governo chinês tentando desvincular, por meio de medidas de diplomacia pública – como iniciativas de cooperação –, a relação que está sendo feita com o Covid-19 e a crise mundial, o qual a China seria a principal causa disso. No entanto, ainda não se sabe o resultado disso”.

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Além disso, para o Demétrius, a complexidade da interdependência no período pré-crise passou a ser preocupante. “Existe a visão de que o mundo, os países não podem ficar mais tão dependentes um do outro, especialmente da China. Porque se você depende de algum produto essencial do mercado chinês, e a China se fecha para o mundo da forma com que se fechou, você pode não ter mais acesso”, disse.

Segundo Demétrius, a globalização “talvez veja as cadeias de valor serem mudadas com o objetivo de ficarem menos dependente, não só da China, mas uma da outra”. Ainda em fevereiro, o ministro das Finanças da França, Bruno Le Maire, orientou as companhias nacionais a reavaliar suas cadeias de produção para se tornarem menos dependentes da mão de obra chinesa e de outros países asiáticos.

“A pandemia do coronavírus é um ponto de viragem para a globalização“, disse o ministro em visita a Atenas.

Recentemente, a senadora norte-americana Lindsey Graham sugeriu, em uma entrevista a um canal de televisão norte-americano, que os Estados Unidos punissem a China por não conter a disseminação em massa da doença, cancelando toda a dívida que o governo possui para com o parceiro asiático. Segundo ela, “a China é o maior patrocinador estatal de pandemias do mundo”.

O próprio Trump já afirmou que a China sofreria consequências se fosse “conscientemente responsável” pela pandemia. “Vamos ver o que acontece com a investigação deles. Mas também estamos investigando”, afirmou o mandatário.

“A interdependência e a globalização continuarão existindo, mas de forma menos intensa, para que não seja entregue a própria segurança do país nas mãos dos outros. Os países deverão se tornar mais autônomos em relação às suas dependências”, disse Demétrius. “Isso pode envolver o que cada país considerará essencial, como a área médica e a área alimentícia. Os países julgarão o que será essencial para eles, e incentivarão as indústrias nacionais a ocupar esse espaço”.

É o exemplo do que está sendo feito no Japão. No total de quase US$ 1 trilhão destinado a estímulos econômicos, US$ 2,2 bilhões foi elencado para incentivar empresas japonesas que queiram retirar sua produção da China para voltar ao Japão, ou se alocar em outros países.

Além disso, nos últimos anos a China reajustou sua estratégia econômica, com o intuito de não ser o principal centro de fabricação de baixo custo do planeta, mas o fabricante de produtos tecnologicamente avançados, como equipamentos de telecomunicação, como a tecnologia 5G, e aeronaves. Isso fez com que norte-americanos, europeus e japoneses se tornassem ainda mais relutantes em ter grandes atividades na China, com o receio de roubo de propriedade intelectual.

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“De fato, já vinha sido observado um processo de desconfiança em relação a esta integração econômica generalizada, embora no discurso os países ainda defendam a liberalização comercial, o que tem contribuído para o crescimento econômico dos países – em particular o da China”, disse Uehara.

Crise pode gerar efeito reverso

A crise desencadeada pelo coronavírus irá, certamente, desacelerar as interações entre os países e suas operações comerciais, mas não a ponto de instaurar uma desglobalização, segundo especialistas.

Segundo Hubertus Bardt, diretor de pesquisa do IW (Instituto de Economia Alemã), existe a avaliação de que a paralisação de indústrias para conter a disseminação do coronavírus expôs a interdependência entre os países e a fragilidade de suas atividades comerciais sem a interação com o exterior. A cautela para mitigar essas deficiências acelerariam o processo de globalização.

“Se antes o mais importante era obter um insumo pelo custo mais baixo, agora, por questão de segurança, as empresas vão começar a olhar para produções em regiões mais próximas e vão querer diversificar o local de produção”, disse Bardt em publicação. “Só que isso tem custos adicionais, que vão acabar dificultando e desacelerando a integração das cadeias globais de valor.”

Com uma ideia similar, a pesquisadora Lisandra Flach, do Ifo-Institut (Instituto de Pesquisa Econômica da Universidade de Munique), afirmou que o aprendizado desta crise é a necessidade da diversificação da cadeia produtiva do país, sem depender de um único centro, o que fortaleceria a globalização em si.

“Vejamos o caso da Alemanha: a penicilina do país vem quase exclusivamente da China. Um lockdown lá traz um efeito devastador para o setor que depende deste insumo”, afirmou a estudiosa em publicação.

A pesquisadora, no entanto, afirma que entende como precipitada a avaliação de que o mundo está passando e passará por uma desglobalização gerada pelo coronavírus. “Não gosto de usar esse termo porque a exportação e importação continuam crescendo. Uma redução da velocidade da globalização acho que demonstra melhor o processo atual”, salienta.

Jader Lazarini

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