Demanda do empreendedor estrangeiro causa ‘fuga de cérebros’ de trabalhadores de TI latinos

Antes da pandemia, o talento estava localizado principalmente onde as empresas ficavam. Agora, as empresas vão até o talento. E isso não significa abrir um escritório perto de um campus universitário, mas sim contratar os melhores talentos de TI que encontrarem onde quer que estejam.

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Daniane Gomes começou a programar aos 16 anos, em 2003. Ela havia conseguido um emprego como secretária/operadora em uma empresa de TI e tinha muito tempo livre.

“Eu tinha muita curiosidade sobre o que faziam. Comecei a pesquisar HTML, tomei a iniciativa de fazer pequenas melhorias no site deles, e então eles perguntaram se eu queria tentar ser programadora, pois a empresa precisava de mais funcionários. Aceitei o desafio e aqui estou, 18 anos depois”.

Atualmente, ela mora na Holanda e trabalha para uma empresa da Suíça.

“No meu círculo, as pessoas que vejo trabalhando remotamente e recebendo em moeda estrangeira são as que têm mais experiência. Quem está começando tem um pouco mais de dificuldade em encontrar oportunidades, seja presencial ou remotamente. É claro que cada um tem sua história e não estou dizendo que essa é a regra ou que é impossível”.

Veja os dados da média salarial para desenvolvedores juniores e seniores em cidades da América Latina, como Buenos Aires, Cidade do México, São Paulo e Bogotá, de acordo com o Glassdoor.

Os salários médios são os de cargos com pelo menos 37 valores registrados até 23 de fevereiro de 2022.

Gomes diz que para os profissionais de TI a concorrência é grande, pois há opções de escolha entre bons salários e boas condições de trabalho, o que nem sempre acontece em outras áreas. “Estamos em um momento muito privilegiado”, diz ela.

Esse privilégio pode até implicar que os trabalhadores ditem como será seu trabalho. Num momento de disputa por talentos, as empresas não podem dar-se ao luxo de correr riscos e perdê-los para uma empresa estrangeira.

Foi constatado que uma startup que deveria implementar o trabalho híbrido este ano no Brasil repensou a decisão, pois os potenciais funcionários davam sinais de que deixariam a empresa se fossem obrigados a se mudar para São Paulo.

Uma pesquisa do LinkedIn mostra que houve um aumento de 273,59% na migração de profissionais brasileiros para os Estados Unidos entre maio de 2020 e abril de 2021 em relação ao período anterior. Depois dos EUA, veio a Austrália, com um crescimento de 252,96% no mesmo período.

Dos 10 principais destinos de empregos para profissionais do maior país da América Latina, seis estão na Europa, dois na América do Norte, um na Oceania e um na América Latina.

A pesquisa do LinkedIn considera uma migração o momento em que um usuário altera a localização em seu perfil do LinkedIn, o que pode significar uma mudança física e/ou um trabalho remoto.

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Essa análise calcula a relação insumo-produto (número de insumos para o Brasil para cada produto). Esses países são classificados do maior aumento para a maior queda com base no percentual da mudança na proporção de entradas e saídas entre maio de 2020 e abril de 2021 em comparação com o mesmo período do ano anterior.

De acordo com o LinkedIn, estes são os principais destinos de trabalho dos profissionais brasileiros:

  1. Estados Unidos (+273,59%)
  2. Austrália (+252,96%)
  3. Alemanha (+194,43%)
  4. Espanha (+188,01%)
  5. Canadá (+177,58%)
  6. França (+162,59%)
  7. Argentina (+106,18%)
  8. Reino Unido (+98,60%)
  9. Irlanda (+55,42%)
  10. Portugal (+42,78%)

A empresa de pagamentos Deel, que trabalha com folha de pagamento, também diz que os EUA é o país que mais contrata brasileiros. Segundo dados da Deel, o país abriga 63% das empresas que contratam internacionalmente, seguido do Reino Unido e do Canadá, respectivamente.

Alexander Torrenegra é um empresário e investidor colombiano-americano. Ele é fundador e CEO da Torre, uma empresa remota que possui equipes no Canadá, Nicarágua, Guatemala, Colômbia, Peru, Equador, Argentina, Uruguai, Chile, Quênia, Espanha, Turquia e Macedônia.

“Com a pandemia, muitas empresas que nem pensaram em trabalhar remotamente de repente perceberam que poderiam fazê-lo. Além disso, as pessoas perceberam que podem trabalhar remotamente e ser mais produtivas, passar mais tempo com família e amigos”, disse.

Empresas como a Torre compreenderam que não precisavam contratar no país onde estão localizadas e poderiam contratar pessoas em qualquer lugar.

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“A única limitação física é: a pessoa está localizada em um fuso horário com o qual posso interagir? E, como consequência disso, para muitas empresas nos EUA e até na Europa Ocidental, a América Latina está nesse fuso horário”, disse Torrenegra.

Com o aumento do número de contratações na América Latina nos últimos dois anos, a região também testemunhou um aumento salarial.

“Os trabalhadores podem ganhar não apenas em dólar, mas podem ganhar salários significativamente maiores enquanto trabalham remotamente. Para muitas pessoas na América Latina a opção era receber um salário menor e ter de se deslocar para um escritório que, se você mora em São Paulo, Bogotá, é uma maluquice”, disse o fundador da Torre.

Os softwares estão mudando o mundo

Marc Andreessen, da a16z, publicou recentemente um artigo explicando por que os softwares estão mudando o mundo.

“Se puder ter pessoas que desenvolvam software, descobrirá que seria mais fácil para você, como empresa, crescer e ter uma vantagem sobre os concorrentes”, explica Torrenegra.

O que vem acontecendo para os talentos da América Latina é que mais pessoas estão vendo que seus colegas têm acesso a oportunidades de trabalho que lhes permitem ganhar bem, trabalhar remotamente e, em alguns casos, viajar enquanto trabalham.

Não à toa, uma pesquisa do LinkedIn apontou que engenheiros de software, cientistas de dados, especialistas em segurança cibernética e gerentes de tráfego são alguns dos cargos mais requisitados em 2022.

Segundo a mais recente pesquisa de dados realizada pela Deel, os profissionais mais visados são engenheiros de software, executivos de contas, engenheiros de garantia de qualidade, projetistas de produtos e consultores.

O brasileiro Daniel Koganas mora no Brasil mas trabalha como desenvolvedor para uma empresa canadense. Assim como ele, outros brasileiros (e um argentino) fazem parte do quadro de funcionários. Mesmo tendo começado o trabalho durante a pandemia, ele diz que já pensava em trabalhar para uma empresa no exterior bem antes da covid-19.

“Na área de tecnologia, o modelo de trabalho remoto já existe há algum tempo. Mas a pandemia obrigou muitas empresas a adotarem este regime e muitas delas viram que funciona, então a oferta de trabalho remoto tornou-se mais comum. Isso vale para o mercado brasileiro também porque, na falta de profissionais em suas cidades, as empresas acabam procurando profissionais em outros estados”.

Segundo Koganas, no mercado externo há muita demanda por profissionais do Brasil, principalmente os mais experientes. Assim como Gomes, ele afirma que é difícil encontrar oportunidades no exterior para desenvolvedores juniores.

Ele conta que no Brasil também há muita demanda por profissionais mais experientes por parte de empresas, não apenas de startups. “No entanto, parece que no momento faltam profissionais para suprir essa demanda.

É por isso que muitas empresas estão investindo pesado na formação de aprendizes, o que acredito ser o caminho correto – ou mesmo um dos poucos caminhos que essas empresas têm para reduzir essa lacuna”.

Índia passou pela mesma situação

Em um movimento semelhante ao que aconteceu com os indianos no passado, os brasileiros começaram a se tornar profissionais qualificados e baratos para empresas estrangeiras.

“Todas as partes saem ganhando, pois o poder aquisitivo em dólares ou euros é muito maior, pelo menos para quem continua morando no Brasil”, acrescenta Koganas.

“Em qualquer lugar do mundo, a demanda por profissionais de TI vem aumentando, não só no Brasil. Então não considero que isso esteja atrelado exclusivamente à moeda estrangeira, e sim porque é um mercado aquecido e precisa de profissionais”, diz o desenvolvedor, que deu mentoria para iniciantes.

“Alguns dizem que estamos vivendo em uma bolha de tecnologia, mas se isso realmente está acontecendo, não acredito que essa bolha vai estourar tão cedo. Eu acho que uma bolha só ocorreria se eles pudessem desenvolver a IA a ponto de executar tarefas de programação e reduzir a demanda por programadores. Mas acredito que vai demorar até que esse futuro chegue”.

Segundo Torrenegra, esse cenário está finalmente fazendo com que as pessoas visualizem a tecnologia como uma oportunidade de carreira muito legal.

“Agora, os latinos querem andar com a turma descolada”. E se antes ‘engenheiro de sistemas’ não era considerada a profissão mais legal, agora engenheiro de software é o trabalho legal.”

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A América Latina costumava ter empresas que atuam como intermediárias, contratando desenvolvedores e depois revendendo seu trabalho para outras empresas nos EUA. Agora, as empresas estão contratando diretamente, pois o trabalho remoto dispensa a necessidade de intermediários.

“As pessoas têm muitas oportunidades de emprego, e as empresas têm muitos candidatos em todo o mundo. Isso significa que os desafios são muito maiores do que quando você procura emprego em uma determinada cidade ou quando procura talentos em uma determinada cidade”, diz Torrenegra.

Normalmente, os desenvolvedores de software podem contar as oportunidades de emprego em suas cidades com os dedos de uma mão. Mas em se tratando do trabalho remoto, todos os dias surgem mais mil oportunidades de trabalho, e milhares de pessoas chegam ao mercado. A Torre é responsável pela automação de correspondências, funcionando como um marketplace de empregos.

“Não combinamos a pessoa com o trabalho ideal, mas com a equipe com a qual trabalhará. Existem mais de 100 fatores diferentes que mudam o que pode ser bom para você como candidato para o que pode ser bom para você como empresa. É por isso que estamos crescendo tão bem este ano”, diz.

A Torre combina candidatos em mais de 180 países com empregos em mais de 50 países. A maior parte de sua base de usuários está nas Américas, onde a empresa conecta talentos com oportunidades nos EUA e também na América Latina.

Como a região bateu recordes de venture capital no ano passado, as empresas de tecnologia também precisam contratar talentos. “Empresas como Nubank estão oferecendo os mesmos salários que uma empresa do Vale do Silício. Você tem o Mercado Livre competindo com ótimos salários também. Então a competição é global agora”.

No TI, pressão sobre empresas locais impulsiona desigualdade de salários

Esse cenário pressiona as empresas locais que costumavam contratar desenvolvedores locais para desenvolver produtos locais apenas porque agora é difícil competir em termos de salário.

Gomes diz que como o real está desvalorizado, as empresas brasileiras têm dificuldade de competir apenas no pagamento.

“Mas também existem empresas estrangeiras que oferecem preços muito baixos, o que não compensa para o profissional. Não adianta receber em uma moeda forte e receber menos e sem CLT, férias remuneradas, FGTS, plano de saúde, etc.”

Nas situações em que os valores são semelhantes, Gomes acredita que, para competir, as empresas brasileiras precisarão oferecer benefícios diferenciados, como jornada semanal reduzida (como já ocorre em algumas empresas de TI), folgas e férias flexíveis para uso a critério do trabalhador e não apenas a divisão das férias em duas ou três vezes ao longo do ano.

“Eles também precisarão oferecer projetos interessantes, com tecnologias mais modernas e não apenas a manutenção dos famigerados sistemas de planejamento de recursos empresariais desenvolvidos nos anos 90″, acrescentou.

Willame Figueredo é gerente de projetos em uma consultoria de TI, onde trabalha em uma equipe de uma das maiores empresas de cosméticos da América Latina. Há alguns dias, ele disse que perdeu dois desenvolvedores brasileiros para empresas norte-americanas em poucos meses.

“O mercado vive um momento em que as empresas disputam talentos e em que não só o salário alto e o trabalho remoto são diferenciais, mas também diversos benefícios atrativos para quem conhece a empresa. E tudo isso é bom para o funcionário, que é constantemente abordado por recrutadores de tecnologia e pode escolher para onde ir”, afirma.

Ele diz que a empresa em que trabalha tem salários e benefícios competitivos para o mercado brasileiro e já tinha uma política de trabalho remoto antes mesmo da pandemia. “Isso nunca foi novidade para nós, pelo contrário, já era uma atração. No entanto, a desvalorização do real permite que empresas dos Estados Unidos, Canadá e Europa consigam oferecer salários extremamente atrativos aos sul-americanos”.

Figueredo destaca que, nos Estados Unidos, um salário de US$ 85 mil por ano é considerado um salário médio baixo para um residente dos EUA, mas um salário superior ao de um senador brasileiro para um desenvolvedor que mora no Brasil.

Figueredo é um dos brasileiros que ingressou no mercado de TI em busca de melhores condições salariais e de trabalho. Há cinco anos, começou a estudar e fazer cursos de gestão, processos e negócios na área. Antes, ele conta que ganhava US$ 290 por mês em uma empresa de atendimento ao cliente na qual liderava equipes de 40 pessoas e trabalhava em fins de semana e feriados.

“Hoje posso ter dignidade com um salário muito melhor, jornada de trabalho justa e benefícios inimagináveis para mim em 2017. Isso também acontece com desenvolvedores, é super comum conhecer pessoas que começaram a programar há menos de um ano e que já estão trabalhando em equipes de desenvolvimento robustas. O mercado tem muito mais vagas do que as pessoas podem preencher. Não é fácil, mas ainda é muito mais fácil do que se submeter à realidade dos empregos do nosso país”.

“Acreditamos que a maior parte do valor do trabalho será processado por trabalhadores remotos. Não a maioria dos empregos, mas a maior parte dos salários pagos aos funcionários serão pagos aos trabalhadores remotos”, complementa Torrenegra.

Ele acredita que o mercado de trabalho de TI verá duas tendências: de um lado, uma homogeneização de salários em nível global, de outro, uma diferença entre ricos e pobres em nível local. Isso significa que trabalhadores locais que ganham muito pouco e trabalhadores remotos que ganham muito dinheiro viverão próximos uns dos outros. “As consequências sociais são muito difíceis de prever, mas é algo que vai acontecer”.

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Bloomberg Línea

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