Marco Carnut

Fugindo do Terraplanismo Econômico

Serão mesmo as criptomoedas “golpes”, como alguns insistem em repetir? Algumas sim, muitas talvez - mas as principais, não. A resposta longa passa, como sempre, por entender os detalhes

Serão mesmo as criptomoedas “pirâmides” ou “golpes”, como alguns insistem em repetir? A resposta curta é: algumas sim, muitas talvez; mas as principais, não. A resposta longa passa, como sempre, por entender os detalhes – que, como vamos mostrar, levam-nos a uma constatação pavorosa e à conclusão de que doido é aquele que não tem pelo menos um pouco em criptomoedas.

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O Bitcoin não nasceu com o propósito de ser veículo de investimento. Antes, o objetivo era ver se dava pra fazer um “sistema de dinheiro via internet” que oficializasse transações de criação e circulação de unidades financeiras, sem necessidade de um coordenador central. Conseguiu isso baseando-se na ideia radical de que ninguém deveria confiar a priori em ninguém, tornando todos os seus participantes “auditores” que conferem rigorosa e meticulosamente o trabalho dos demais.

E, mais importante, são todos voluntários sem vínculo formal. Ou seja, o Bitcoin não é uma empresa (embora alguns dos voluntários sejam), nem uma associação; não tem sede, nem estatuto, nem CNPJ, já que nem pessoa jurídica ele é. Portanto, não tem conta em banco, nem muito menos aceita depósitos em reais ou dólares. Era um sistema financeiro estanque, à época apelidado de “dinheiro de mentirinha”, totalmente desconectado da economia tradicional. Então, não tem como ser pirâmide.

Quem aceita depósitos são as empresas intermediadoras, e, ao permitir comprar bitcoins usando dólares ou reais, o “dinheiro de mentirinha” passou a valer “dinheiro de verdade”. Muitas copiaram o conceito das bolsas de valores, passando a tratar as criptomoedas de forma semelhante a ações ou outros instrumentos financeiros, seguindo ideia do “comprar barato pra depois vender mais caro”. Foi daí que se popularizou a imagem das criptomoedas como ativos financeiros para investimento especulativo.

Essas primeiras “corretoras”, surgidas em 2010, eram operações um tanto amadoras, com gestões temerárias. Muitas delas faliram e/ou receberam sérias penalidades por descumprirem regulações. A mais famosa delas, a MtGox, chegou a deter quase 80% do nascente mercado e faliu em 2014, antes de completar três anos de vida – a primeira de uma trágica série de quebradeiras espetaculares que se arrasta até hoje, como no recente caso da FTX. As manchas na reputação do mercado que esses incidentes ocasionaram ecoam até hoje.

Mas, enquanto muitas corretoras passavam mal, o Bitcoin em si continuava firme e forte, processando transações e publicando-as como se nada tivesse acontecido. Isso ilustra uma distinção crucial: muitas discussões se desvirtuam exatamente por confundir “a criptomoeda Bitcoin” com o “mercado” composto pelas corretoras e intermediadoras ou com o “preço” do Bitcoin.

Aliás, eis aí um bom critério: se o projeto da criptomoeda existe independente das empresas que o usam, é um bom sinal – Bitcoin, Ethereum, Monero, Litecoin são os já super bem estabelecidos. Se é algo desconhecido e promovido por uma única empresa, atenção redobrada: pode até ser algo sério, mas é daí que boa parte das roubadas e pirâmides se origina.

Para um leigo, pode ser bem difícil distinguir essas coisas. E também não é nada fácil distinguir entre as poucas empresas sólidas e sérias (existem, e não são poucas!) de empreendimentos aventureiros com gestões amadoras, irresponsáveis ou patentemente fraudulentas. Do ponto de vista do leigo, o processo é idêntico: os clientes depositam uma grana, e, por algum mecanismo que às vezes eles nem fazem questão de entender direito (e aí está a armadilha!), o dinheiro “rende” e eles podem ir sacando aos pouquinhos.

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Enquanto esses pequenos saques funcionam, tudo parece bem.

Afinal, quando você deixa dinheiro (reais, dólares, bitcoins, ou qualquer outra criptomoeda) em uma corretora, você está confiando que essa empresa vai honrar suas obrigações – em particular, que conseguirá sacá-los integralmente no futuro. É uma tremenda aposta, mas não muito diferente da que você faz com os bancos tradicionais. Está apostando que não é um golpe e que continuará bem gerida a ponto de não falir. Muitas, porém, faliram: procure no Google por “history of crypto exchange failures”.
Mas, para ser justo, procure também por “history of bank failures”.

Aqui no Brasil tivemos, sim, diversas empresas que deram sumiço no dinheiro dos investidores após todo tipo de promessas espúrias de “rendimentos fixos mensais”, “lucros consistentes com robôs de trading”, “nova criptomoeda do momento”: basta procurar no Google por “pirâmides com criptomoedas” para achar material para se fartar. O assunto tomou tamanha dimensão que foi aberta até uma Comissão Parlamentar de Inquérito para investigar esses casos, originalmente chamada de “CPI das Criptomoedas” e depois renomeada para “CPI das Pirâmides” exatamente pra não perpetuar as confusões que discutimos acima. Tomara que não termine em pizza.

O foco nas pequenas (e não tão pequenas) pirâmides, porém, tende a cegar-nos quanto a uma visão “macro” muito mais interessante e muito menos discutida: vivemos em uma realidade onde as dívidas públicas só aumentam, em que as contas nunca fecham, em que sempre é preciso aumentar impostos (seja explicitamente, seja sorrateiramente através da emissão cada vez mais desenfreada de moeda), na qual a moeda supostamente estável é programada para se desvalorizar. Quando os bancos “grandes demais para quebrar” quebram, os governos socializam o prejuízo e mandam mais essa conta para as gerações futuras.

Dá mesmo pra chamar isso de “economia saudável”?

Os defensores do sistema cerram os dentes, enrolam e desconversam, mas a única diferença substancial entre isso e uma pirâmide financeira tradicional é que, nesta última, entra-se voluntariamente; na primeira, a participação é compulsória: seus filhos não terão a opção de não tomar parte nela. Vão passar a vida ralando para bancar os faraós, que por sua vez farão de tudo para perpetuá-la, repassando a conta para seus netos, e assim sucessivamente. Lembrando que a população global está para diminuir e temos cada vez menos jovens para sustentar os idosos, tem-se a receita perfeita para a pirâmide quebrar por falta de novos entrantes.

É uma constatação chocante, algo como dar-se conta que a Terra é redonda após passar a vida toda achando que era plana. Por isso, se você não gosta de pirâmides financeiras, mude de planeta, pois a vida inteira você esteve, e ainda está, aprisionado em uma – apenas que ela é tão grande que talvez, tal como a forma da Terra, você não a tenha reconhecido como tal. As criptomoedas, mesmo que também não goste delas, são a única coisa que já funciona hoje em escala global que remotamente se aproxima de uma alternativa.

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Nota

Os textos e opiniões publicados na área de colunistas são de responsabilidade do autor e não representam, necessariamente, a visão do Suno Notícias ou do Grupo Suno.

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