Opinião: semana de trabalho de quatro dias? O Brasil não é a Islândia

Na Islândia, em 2015 e 2017, após uma forte campanha organizada por sindicatos e organizações da sociedade civil, começaram dois testes para reduzir a jornada de trabalho para quatro dias por semana.

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Nesse teste foram envolvidos funcionários da prefeitura da capital, Reykjavík, e do governo central. Ao todo, 2.500 pessoas, cerca de 1% da força de trabalho da Islândia.

A jornada de trabalho foi reduzida de 40 para 35-36 horas semanais, mantendo a mesma remuneração.

Segundo as autoridades locais, os resultados foram muito positivos. Tanto que hoje 86% dos trabalhadores islandeses obtiveram redução do horário de trabalho ou o direito de solicitá-la no momento das renovações dos contratos, previstas para 2019 e 2021.

Ao final dos testes, observou-se um aumento da produtividade e da satisfação no equilíbrio entre tempo livre e tempo dedicado ao trabalho.

Todavia, esses resultados precisam ser contextualizados. Em comparação com os outros países escandinavos, já antes do teste a Islândia caracterizava-se por um maior número de horas trabalhadas e menor produtividade.

Os rankings da Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE) colocam a Islândia entre os países com menos tempo livre dos trabalhadores, ao lado de países com elevada proporção de atividades intensivas em mão-de-obra, como México, Chile e Japão.

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Os resultados em termos de bem-estar social têm sido muito positivos:

  • mais tempo para si e para a família, incluindo atividades de cuidado;
  • fins de semana menos prejudicados pela pressa em fazer o que ficou para trás durante a semana de trabalho;
  • benefícios relevantes para pais solteiros, uma categoria frequentemente prejudicada pela falta de tempo.

Em última análise, melhorando a saúde física e psicológica dos trabalhadores.

Por outro lado, se na maioria dos casos a redução da jornada de trabalho foi compensada com o aumento da produtividade, no setor público e em particular na saúde, foram necessárias contratações adicionais, que aumentaram os custos em cerca de 5%.

Islândia rica, workaholic mas pouco produtiva

A Islândia é um dos países mais ricos do mundo em termos de Produto Interno Bruto (PIB) per capita.

A pequena ilha de apenas 350 mil habitantes, próxima ao Polo Norte tem um baixo desemprego, uma participação muito elevada na força de trabalho (cerca de 87% de pessoas ocupadas na faixa etária entre 15 a 64 anos) e uma economia baseada em serviços avançados.

Ao longo dos anos, o debate público focou cada vez mais na hipótese de correlação entre baixa produtividade (em termos relativos) e longa jornada de trabalho. Ou seja, trabalhar demais acabava produzindo pouco.

Uma questão levantada também a partir de pesquisas de opinião em que a população reclamava não ter tempo para si e para a própria família, se sentindo cansada por causa do elevado número de horas de trabalho.

Consequentemente, concluiu-se que esta situação produzia um círculo vicioso, no qual a baixa produtividade tinha que ser compensada por uma maior jornada de trabalho.

Todavia, é verdade que a redução da jornada de trabalho aumenta a produtividade? Ou è o fluxo causal que muda para o outro lado?

Ou seja, è a alta produtividade que pode ser redistribuída para o trabalho reduzindo a jornada de trabalho e mantendo o mesmo salário?

Intuitivamente, os níveis de produtividade estão positivamente correlacionados com o desenvolvimento industrial e tecnológico de um setor econômico.

Entretanto, existe também uma ampla literatura que demonstra como reorganizações de horários e métodos de trabalho permitem a recuperação da produtividade e a redução da jornada de trabalho, em igualdade de condições.

Portanto, a produtividade possui determinantes “duras”, como dotação de capital físico e tecnologia, e “leves”, como organização do trabalho e questões sociais.

Dois fenômenos fortemente interligados e, de fato, indissociáveis. E isso deve ser considerado para compreender o fenômeno islandês.

De fato, as pesquisas mostram que dar uma “desligada” do trabalho produz melhores resultados de produtividade e convívio social.

Mas pensar em recuperações de produtividade apenas por essa maneira “leve”, faltando na outra ponta capital físico, intelectual e dotações tecnológicas, é, de fato, irreal.

Ou, para ser mais drásticos, um atalho para o fracasso.

Resultados dos testes

Os dois testes conduzidos no setor público da Islândia durante os últimos anos envolveram tarefas e funções muito heterogêneas.

Entre elas, trabalho em turnos, escolas, forças policiais, serviços pessoais.

A base da experimentação sempre foi a mensurabilidade do desempenho, definida antecipadamente de acordo com metodologias partilhadas entre o empregador público e os sindicatos.

Um resultado virtuoso da reorganização ficou evidente na redução do número de horas efetivamente trabalhadas e, ao mesmo tempo, o não aumento das horas extras.

Muitos temiam esse “efeito colateral” que, no final, não ocorreu.

A redução do tempo de trabalho também foi alcançada através da redução do tempo dedicado às reuniões.

Este ponto é muito interessante: se a função da reunião é definir como são realizadas atividades e tarefas, a redução do tempo dedicado às reuniões com, ao mesmo tempo, um aumento da produtividade significa que o valor agregado da iniciativa individual tornou-se decisivo.

Mas para ter esse resultado é necessária uma força de trabalho que se identifique com a organização onde atua, além de ser educada e bem treinada.

Em outras palavras, é necessária coesão social dentro da empresa ou da instituição de trabalho.

Exatamente a variável que, até o momento, provou ser a base do sucesso dos países escandinavos.

Será que o modelo da Islândia é exportável ao Brasil?

Em suma, a Islândia partiu de uma situação onde a jornada de trabalho era por volta de 40 horas semanais. Mas tinha uma dotação tecnológica e de capital que permitiu uma elevação da produtividade.

Não é possível pensar em avaliar os trabalhadores ignorando o capital em dotação e, especialmente, a forma que esse capital é utilizado.

Então, claro, a reorganização dos horários de trabalho é importante. Mas para haver uma mudança real, além da educação e da formação, é necessária coesão social em todos os níveis.

Só assim podemos escapar de uma lógica onde todo o mundo faz apenas o mínimo indispensável e existe um contexto de desconfiança social que gera um jogo de soma zero. Onde os ganhos de um grupo de trabalhadores correspondem a perdas iguais para outros grupos.

Não é surpreendente que tais elementos de coesão sejam encontrados em um país escandinavo.

Assim como não deve surpreender que esse tipo de contexto não possa ser reproduzido no Brasil.

Por aqui não possuímos nenhuma das condições sociais, económicas e tecnológicas da Islândia.

Não em nível nacional. Nem nível de empresas.

No Brasil, o capital físico é muito menor do que na União Europeia (UE) ou nos Estados Unidos.

E a tecnologia de muitas produções, especialmente no setor público, é muito atrasada.

No Brasil, nove em cada dez estudantes saem do ensino médio sem ter noções mínimas de português ou matemática.

Ou seja, o capital humano é ainda mais escasso.

Não por acaso, no Brasil, a produtividade de um trabalhador é apenas 1/5 daquela de um homólogo europeu e 1/6 de um colega americano.

Sem contar que o setor que mais gera riqueza no Brasil, e que segura o PIB todos os anos, é o setor da agropecuária, e não o dos serviços, como no país escandinavo.

Portanto, por quanto muita gente já esteja querendo “fazer como a Islândia”, os tempos – e o País – definitivamente não estão maduros.

Antes de poder reduzir os dias de trabalho como a Islândia o Brasil tem ainda muito trabalho de casa para fazer.

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Carlo Cauti

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