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Falta de investimento na economia do cuidado empaca desenvolvimento e aumenta desigualdades

Falta de investimento na economia do cuidado empaca desenvolvimento e alarga desigualdades

Cuidado. Foto: Pixabay

A pandemia do novo coronavírus (Covid-19) acentuou o debate sobre a economia do cuidado, um sistema de organização desassistido, desempenhado majoritariamente por mulheres, no qual os trabalhos são desvalorizados. Cozinhar, limpar e zelar por crianças, doentes e idosos são tarefas tão diárias quanto essenciais ao bem-estar comum e ao funcionamento dos mercados. A responsabilidade desbalanceada e, especialmente, a falta de investimentos perpetua as desigualdades e trava o crescimento econômico.

Para alcançar o desenvolvimento e fechar as lacunas de cobertura nos serviços de saúde e educação será preciso investimento substancial, o qual — no longo prazo — pode se tornar o principal motor da expansão de empregos futuros em serviços ligados à economia do cuidado. A estimativa é da Organização Internacional do Trabalho (OIT).

Em relatório de 2018, a agência projetou: no cenário de status quo, o número de trabalhadores no total de empregos indiretos relacionados a educação, saúde e serviço social deverá atingir 358 milhões em 2030 em 45 países. A hipótese não exime novos gastos. O dinheiro destinado ao setor deverá sair do nível atual de 8,7% do Produto Interno Bruto (PIB) para 14,9% com o objetivo de sustentar este passo.

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O aumento de recursos aplicados na economia do cuidado a cerca de 18,3% do PIB, o cenário otimista, resultaria em um total de 475 milhões de empregos, dos quais 117 milhões serão novos empregos adicionais, além daqueles criados no cenário status quo.

A criação de novos postos de trabalho fruto do desembolso serviria paralelamente para promover a autonomia de mulheres e reduzir a desigualdade de gênero.

Caso o investimento não cresça em, pelo menos, 6 pontos percentuais do PIB global até 2030, os déficits na cobertura aumentarão e as condições de trabalho dos profissionais de saúde se deteriorarão, alertou a OIT.

Economia do cuidado em franca expansão

A população está envelhecendo. A mudança demográfica é reflexo da queda nas taxas de natalidade, diminuição da mortalidade e aumento da longevidade. O acesso ao mercado de trabalho para mulheres e o níveis de renda mais elevados são outros fatores os quais fazem crescer a média de idade de uma dezena de nações.

O envelhecimento tem levado a implicações relevantes para o crescimento econômico, a produtividade, a sustentabilidade das contas públicas. Dados da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) mostram que o números de idosos aumentará em todos os membros do G20 nas próximas décadas, embora em ritmos diferentes.

Número de pessoas com mais de 65 anos por 100 adultos em idade produtiva (20-64). Foto: Reprodução OCDE

De acordo com a organização internacional, o envelhecimento populacional colocará o financiamento de pensões adequadas, saúde e cuidados de longa duração sob alta pressão.

“É necessária uma abordagem abrangente para lidar com os custos do envelhecimento e promover o crescimento inclusivo em uma era de mudanças demográficas. Deve ser adaptado às configurações institucionais e políticas de cada país e às preferências sociais, e pode abranger muitas áreas de políticas públicas”, salientou a OCDE.

Mas se a taxa de natalidade recua, os desafios parecem não ficar para trás. Relatório do Banco Mundial, de dezembro de 2020, apontou para um percentual superior a 40% de todas as crianças com idade inferior à escola primária — quase 350 milhões — em necessidade de creches, porém sem acesso.

A instituição financeira argumentou em favor de investimentos em creches, os quais poderiam elevar o emprego e a produtividade das mulheres, criar novos postos de trabalho, melhorar os resultados das crianças, impulsionar o crescimento econômico e apoiar uma recuperação mais resiliente.

“O valor do trabalho do cuidado deve ser incluído quando estamos falando na sustentação de uma sociedade e de um país. Isso inclui rever as formas que tradicionalmente tem sido utilizadas na valorização e na organização dessas tarefas,” disse Maria José Tonelli, professora no departamento de Administração Geral e Recursos Humanos na FGV EAESP.

Segundo a doutora, a sociedade tem avançado no reconhecimento do valor do trabalho do cuidado, uma transformação acelerada pela pandemia. “Todos dependem dessas atividades para uma vida melhor, para o desenvolvimento das crianças, enfim, para uma sociedade igualitariamente organizada.”

“Espero que no futuro essas atividades sejam reconhecidas como um valor inestimável para toda a sociedade e que sejam distribuídas igualmente entre os gêneros.”

Mercado de US$ 10,8 trilhões

O cuidado de crianças, idosos e doentes, bem como o trabalho doméstico diário são cruciais. Sem a economia do cuidado, a sociedade desmoronaria.

Em janeiro de 2020, a Oxfam Internacional publicou o relatório “Hora de cuidar”, no qual chamou atenção para o valor agregado à economia pelo trabalho de cuidado: US$ 10,8 trilhões, uma cifra três vezes o tamanho da indústria de tecnologia global. O número é subestimado e o valor real deve ser muito superior, escreveu a entidade.

A maioria dos benefícios financeiros são atribuídos aos mais ricos, a maioria dos quais, homens. Isso quando as mulheres representam dois terços da força de trabalho de assistência remunerada. O gap sobe mais de três quartos quando a métrica é o trabalho não remunerado.

Estudo do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), vinculado ao Ministério da Economia, indicou a presença de um sistema organizador articulado em dois princípios. O primeiro, de separação: determinados serviços devem ser por homens e outros por mulheres. O segundo diz respeito à hierarquização, a qual define trabalhos tidos masculinos como sendo mais valiosos.

“A divisão sexual do trabalho opera como um princípio de distribuição de bens sociais (materiais e simbólicos) e implica diferentes possibilidades de experiência da cidadania para homens e mulheres”, escreveu Bruna Pereira, em relatório da fundação.

A constatação corrobora a exposição de Nathalia Paulino, sócia-fundadora da Nau Capital, family office com R$ 1,5 bilhão sob gestão. “Sempre que me pergunto quando seria o momento de ser mãe essa é a primeira questão que me vem a cabeça, ou seja, a profissional.”

“Hoje, chego no escritório às 8h da manhã e saio 7h, 8h da noite. Ter um lar, com um filho para cuidar, não é só contratar uma babá. É muito mais do que isso. Envolve, primeiro, a parte afetiva, emocional; e o capital humano“, disse Paulino. “Para a mulher, é sempre um trade-off eterno.”

Nas palavras de executiva, a mulher acaba carregando a carga da maternidade, lado a lado com a “culpa profissional”. A diferença gênero, segundo a sócia-fundadora do family office, está alicerceada no pilar natural da mulher, aquela quem carrega e dá luz ao bebê. Ainda assim, há uma fatia socioeconômica nesse bolo.

Homens possuem 50% mais riqueza do que mulheres. Foto: Reprodução Oxfam

“Se em algum momento uma mulher e um homem, os dois trabalhando no mercado financeiro, tiverem um bebê e de se dedicar mais à família, com certeza, será a mulher, até pela questão financeira. Normalmente, até nos mesmos cargos, o homem ganha mais.”

Caminhos ao cenário otimista

Estímulos para que a mulher pudesse seguir o seu caminho deveriam existir, disse Nathalia Paulino. No setor privado, a executiva abordou a possibilidade de equiparação do tempo de licença. Hoje, mulheres possuem o direito de 180 dias para licença-maternidade, enquanto homens têm apenas 20.

A medida serviria tanto para estreitar os vínculos entre pai e filho quanto para aliviar a carga de trabalho da mulher. Simultaneamente, seria positivo para a empresa, disse Paulino, pois melhoria a imagem diante da “comparação que se faz quando a mulher está fora e o homem não”.

Outra solução voltada ao âmbito privado é desenvolvimento de uma cultura transparente e aberta. “Tudo que é repetido, falado, colocado para fora torna-se mais natural.”

No que tange ao setor público, a OCDE indicou a elaboração de políticas fiscais adequadas para evitar que os casais de segunda renda, geralmente mulheres, sejam tributados mais fortemente do que os solteiros, desencorajando a participação feminina na força de trabalho.

A melhora do acesso a serviços públicos, creches e cuidados com os idosos permitiria ainda uma equilíbrio entre a vida pessoal e profissional, destacou a organização. Dias letivos mais longos serviriam adicionalmente como alternativas para creches públicas.

“Cada minuto a mais que uma mulher gasta em trabalho de cuidado não remunerado representa um minuto a menos que ela poderia estar potencialmente gastando em atividades relacionadas ao mercado ou investindo em suas habilidades educacionais e vocacionais.”

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