Marco Carnut

Irrastreável e inconfiscável, mas nem tanto

Ouve-se muito falar que o Bitcoin é irrastreável e inconfiscável. Mas vemos ampla cobertura jornalística comemorando as vitórias das polícias em reaver somas bilionárias em criptomoedas. Como pode?

Ouve-se muito falar que o Bitcoin é irrastreável e inconfiscável. Mas, se buscarmos no Google por “apreensões de bitcoin” ou “largest bitcoin seizures” em inglês, vemos ampla cobertura jornalística comemorando as vitórias das polícias em reaver somas bilionárias em criptomoedas. Como pode?

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Na rede bitcoin, não existem os conceitos de “pessoa física” ou “jurídica” – e nem sequer de “usuário”: nela, só existem quatro coisas: chaves, endereços, transações e blocos. Quando um novo usuário ingressa na rede, o que os aplicativos de carteira fazem é sortear um número (conhecido como “chave privada”) ou, nas versões mais modernas, uma espécie de “senha” de 12 ou 24 palavras (chamada “semente”) que dá origem a várias chaves privadas.

O aplicativo de “carteira” realiza um cálculo que converte cada chave em um “endereço” correspondente que age como “número de conta” ou “chave do PIX”: é a informação que você precisa passar para os outros poderem te mandar dinheiro. E, tal como a chave aleatória do PIX, não revela nada sobre a identidade nem informação de contato do dono da “conta”.

Com as chaves privadas, o usuário pode usar uma coisa do mundo da criptografia – as chamadas “assinaturas digitais” – para autorizar transações de geração e transferências de valores que são adicionadas em “edições de um diário oficial” chamadas de “blocos”. O histórico de transações resultante é público e auditado continuamente por todos os participantes. Tem-se rastreabilidade perfeita no sentido que sempre se sabe de qual endereço os bitcoins vieram, em que quantidade, e pra qual endereço foram. Só que no mundo tradicional, o termo “rastreabilidade” significa também “quem é a pessoa física dona daquele endereço”.

Só que, como o Bitcoin simplesmente não precisa de nome, e-mail, CPF, ou foto – ele simplesmente não coleta esses dados. O que o torna, por sinal, muito mais aderente ao princípio da “minimização de dados pessoais” do artigo sexto, inciso terceiro, da nossa Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais, do que qualquer outro sistema.

Então, se o cara usa apenas a rede Bitcoin e jamais vaza informações de contato e/ou dados pessoais por outros meios, pode realmente ser extremamente difícil identificá-lo. Talvez o exemplo mais notório de alguém que conseguiu isso seja o próprio Satoshi Nakamoto, o inventor do Bitcoin: até hoje não se descobriu sua identidade.

Acontece que 99% dos donos de criptomoedas simplesmente não seguem esse caminho; em vez disso, eles compram, vendem e guardam as criptomoedas nas corretoras – empresas legalmente constituídas e que são obrigadas a identificar e manter cadastro dos seus usuários. A menos que você minere bitcoin – o que hoje em dia requer um investimento altíssimo de tempo e dinheiro – é difícil obter quantidades expressivas de bitcoin sem tê-los comprado através de alguma corretora.

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Muitas diferenças de regulação em diferentes jurisdições

Assim, quando o judiciário lhes envia um ofício ordenando que identifiquem se dados endereços lhes pertence e a quais do de seus clientes estão associados, as corretoras obedecem; e, se lhes for ordenado que bloqueiem saques, elas também o farão. Isso já acontece rotineiramente há vários anos: os departamentos jurídicos das corretoras têm equipes inteiras só pra isso.

É verdade que a coisa fica mais complicada quando a corretora é de outro país e não tem representação no Brasil. Há muitas diferenças de regulação em diferentes jurisdições e ainda não há um sistema global de intercâmbio de informações entre as corretoras. Há, porém, muita cooperação voluntária, a regulação tem evoluído e os piratas têm encontrado cada vez menos espaço.

Um caso famoso foi o da campanha de extorsão (“ransomware”) WannaCry, que fez manchetes em 2017 por ter atingido muitos hospitais no Reino Unido e até no Brasil: quando seus operadores transferiram os bitcoins para a ShapeShift, uma corretora suíça, ela prontamente os bloqueou, pois os endereços de origem eram amplamente conhecidos. Essa história recebeu ampla cobertura jornalística, procure por “Shapeshift blocks WannaCry” no Google para saber mais.

Mas talvez o caso mais emblemático tenha sido o de Carl Force IV e Shaun Bridges, dois ex agentes da agência anti-entorpecentes dos Estados Unidos: enquanto trabalhavam disfarçados em uma das investigações para tentar pegar o líder de um famoso mercado digital de drogas ilícitas, abusaram de suas posições e privilégios para extorqui-lo em várias centenas de bitcoins. Só que, ao enviarem os bitcoins para uma corretora, a própria trilha que deixaram no blockchain do bitcoin foi uma das evidências mais contundentes no processo que os condenou. bProcure no Google por “Carl Force IV affidavit” caso queira saber mais, especialmente o “Exhibit E”, que se tornou lendário.

Mais recentemente, o vice primeiro ministro ucrianiano Mykhailo Fedorov veio ao Twitter pedir que as corretoras de criptomoedas bloqueiem as contas dos oligarcas russos que tentavam tirar seu dinheiro do país em guerra. A maioria das corretoras acabou fazendo exatamente isso porque não estavam a fim de comprar briga com os reguladores americanos, nem atrair para si a imagem que estariam se deixando usar como meio de burlar as sanções contra a Rússia.

Ao longo dos anos, os repetidos sucessos em apreender bitcoins, seja nas corretoras, seja realizando batidas e/ou confiscando fisicamente os computadores que armazenam as chaves privadas, fez do governo americano o maior detentor individual de bitcoins do mundo, com mais de 200 mil bitcoins (cerca de R$ 28 bilhões à época em que este texto foi escrito) sob sua custódia. Aqui no Brasil, as autoridades investigativas também têm registrado, de uns anos pra cá, sucessos expressivos e crescentes no rastreamento e confisco de bitcoins relacionados a atividades ilícitas.

Disso tudo fica claro que a questão da rastreabilidade ou confiscabilidade depende das circunstâncias particulares de cada caso. Mas há ainda outros complicadores: primeiro, existem serviços clandestinos chamados “mixers”, que trocam (mediante uma taxa) bitcoins de uma genealogia “manchada” por outros de genealogias “limpas”, dificultando o trabalho dos investigadores.

Segundo, existem criptomoedas, tais como a Monero, que empregam criptografia de uma forma ainda mais mágica: elas conseguem ser auditáveis sem tornar o histórico de transações público, como fazem o Bitcoin e quase todas as outras. Isso faz com que só o originador e destinatário da transação possam ver os endereços e valores envolvidos. Nesse caso, a rastreabilidade se torna tão mais difícil que muitas corretoras preferem simplesmente não operar com elas, pois dificultam o relacionamento com os reguladores.

Isso tudo criou uma nova profissão, o “analista de dados de blockchain”, especializado em caçar todas essas informações para pautar investigações e processos jurídicos. E criou também um mercado de ferramentas, como a Chainalysis, Ellpitic, etc., para facilitar o rastreamento e identificação dos donos dos endereços.

Mas o fato inescapável é que o faroeste está virando coisa do passado: as criptomoedas estão cada vez mais integradas nos vários segmentos da sociedade, tanto no mercado financeiro global quanto entre as autoridades investigativas. Então, da próxima vez que você ouvir os alarmistas e haters dizerem que “bitcoin é impossível de rastrear”, “só presta para criminosos” e semelhantes extremismos, sensacionalismos e clickbaits, saberá de que lado eles estão na imortal batalha entre informação e desinformação.

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Nota

Os textos e opiniões publicados na área de colunistas são de responsabilidade do autor e não representam, necessariamente, a visão do Suno Notícias ou do Grupo Suno.

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