Marco Carnut

A Gravidez de Satoshi no Dia das Bruxas

No dia 31 de outubro de 2008, Satoshi Nakamoto, do qual ninguém tinha ouvido falar, publicou um artigo cujo título, traduzido para português, ficaria algo como “Bitcoin: Um Sistema de Dinheiro Eletrônico entre Pares”. O documento posteriormente passaria a ser considerado o marco fundador da era das criptomoedas

No dia 31 de outubro de 2008, um tal de Satoshi Nakamoto, do qual ninguém tinha ouvido falar, publicou um artigo cujo título, traduzido para português, ficaria algo como “Bitcoin: Um Sistema de Dinheiro Eletrônico entre Pares”. O documento posteriormente passaria a ser considerado o marco fundador da era das criptomoedas, a ponto das pessoas celebrarem o aniversário de sua publicação. Mas, tal como tantos outros textos sagrados, pouca gente de fato o leu e menos gente ainda o entendeu, e talvez muita gente não sabe nem que ele existe.

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A primeira razão pela qual o texto é pouco compreendido aqui no Brasil é bem óbvia: o texto foi escrito em inglês. Mas há traduções decentes: procure no Google por “Bitcoin Whitepaper em Português”. Segundo, o texto é extremamente sucinto, descrevendo o sistema todo em meras nove páginas (oito, na verdade, pois a última são as referências bibliográficas).

Ele atinge essa concisão usando com maestria o jargão técnico-acadêmico da área e assumindo que o leitor já tem familiaridade com vários tópicos da disciplina de criptografia, como funções de hash e assinaturas digitais. Vários predecessores do bitcoin também usaram esses ingredientes, então conhecê-los e saber que eles resolvem boa parte do problema (embora não todo) é considerado “básico” nos círculos acadêmicos.

Mas, se o leitor não manja desses assuntos, já tropeça e desiste logo na segunda página – o que não deixa de ser tragicômico, pois muita gente usa funções de hash diariamente, na forma dos dois últimos dígitos do CPF ou CNPJ; e o Judiciário, por exemplo, usa assinaturas digitais para garantir que tentativas de adulteração de sentenças e acórdãos possam ser detectadas.

Daí, então, o Satoshi parte para resolver o problema restante, que é detectar se o mesmo dinheiro foi gasto duas vezes, o chamado “problema do double-spending” ou “gasto duplicado”. Na seção 3 ele relembra que a solução tradicional para isso é um participante especial que atue como árbitro, mas isso resulta em um sistema centralizado – o que não tem graça nenhuma, pois é como todos os sistemas até então existentes já funcionavam. Daí ele segue para mostrar o verdadeiro “pulo do gato”: como fazer sem a necessidade desse tal árbitro.

Esse, aliás, é o significado o termo “entre pares” no título (às vezes traduzido como “ponto-a ponto” ou deixado no original em inglês “peer-to-peer”): todos os participantes (computadores, não pessoas) do sistema são “pares” no sentido de igualdade, em que todos têm exatamente os mesmos poderes e nenhum é especial, ninguém é o “chefe”; cada um pode agir e decidir por si próprio e ainda assim a probabilidade de divergências cai exponencialmente com o tempo. Por isso que o sistema é descrito como “descentralizado”.

A maneira pelo qual o Satoshi conseguiu, descrita na seção 4, foi usando como “critério de desempate” um fenômeno físico que pode ser independentemente medido por qualquer participante: a quantidade de esforço que os computadores tiveram de dispender para realizar um determinado cálculo. Em caso de conflitos, ganha a versão daqueles que gastaram mais esforço, o tal “proof-of work” (“prova de trabalho”, em Português).

Isso, aliado ao fato que todas as transações são visíveis por todos os participantes, permite que todos auditem continuamente que o trabalho de todos os demais está correto, como ele descreve na seção 6. Tentativas de burlar as regras do sistema são prontamente detectadas e ignoradas (item 5 da lista). A confiabilidade do sistema como um todo nasce da desconfiança contínua dos participantes uns com os outros.

A seção 6, intitulada “Incentivos”, é particularmente interessante de ler, pois mostra como os participantes da rede podem simultaneamente atuar como auditores e “casa da moeda”, gerando novas unidades monetárias para serem colocadas em circulação. É de uma analogia que ele faz nessa seção que surgiu o apelido “mineração” para esse processo.

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Ou seja, o artigo do Satoshi é um texto sobre ciência da computação, escrito por alguém proficiente na área para leitores também proficientes na área. Como é comum no meio acadêmico-científico, é um texto sério, sóbrio, sem delírios de grandeza. Ele articula um problema, propõe uma solução, discute a engenharia necessária para a coisa funcionar, convidando à discussão e à participação na gestação do sistema antes de colocá-lo no ar (o que só viria a acontecer dois meses depois).

Há muito o que admirar no artigo do Satoshi. É especialmente fascinante que todos os ingredientes básicos que ele usou já eram conhecidos, mas ele os combinou de uma maneira original para criar algo inédito. Cada parte do sistema serve simultaneamente para vários propósitos e, juntas, se reforçam para que o resultado seja mais que a mera soma das partes. Se qualquer item for retirado, a coisa não funciona (“a perfeição é atingida não quando não há mais nada a acrescentar, mas quando não há mais nada a retirar”, diz um velho adágio).

Não é exagero afirmar que o Bitcoin talvez seja a única coisa genuinamente nova na disciplina de Segurança da Informação em meio século. Antes do Bitcoin, todo “sistema de segurança” sempre precisava de um centralizador que impusesse as regras e punisse os ofensores; depois do Bitcoin, sabe-se que altos níveis de segurança podem ser atingidos sem um coordenador central e, pela primeira vez na história, tem-se um sistema de “contabilização colaborativa perfeita” onde a auditoria é precondição para o sucesso de uma transferência de valor.

Não é pouca coisa. Uma busca por esse artigo no Google Scholar mostra que ele tem mais de 20.000 citações, mostrando o impacto profundo e abrangente que teve e continua tendo. Mais do que meramente uma “criptomoeda”, o Bitcoin tornou-se um paradigma, uma nova forma de pensar certos problemas. Convém lembrar, claro, que entre a Ciência e o Mercado há um longo caminho, cheio de utopias, oportunistas, farsantes e acidentes de percurso – tema para uma coluna futura.

Mas, talvez, uma perspectiva ainda mais interessante é observar o que o artigo do Satoshi não fala:

  • não cita dólares nem nenhuma moeda nacional;
  • não fala de “preço do bitcoin”, nem tampouco sobre investimento, nem sobre corretoras (ele até cita “stock exchanges”, mas em outro contexto)
  • não usa os termos “criptomoeda” nem “criptoativo” – esses foram inventados muito depois;
  • não menciona o termo “blockchain” – o mais próximo que chega é “chain of blocks”;}
  • não fala em burlar regulações, nem derrubar governos, nem tornar advogados desnecessários;]
  • não diz que “uma transação bitcoin precisa de maioria simples para ser considerada legítima e correta” (se você procurar por esses termos no Google, talvez ache esse erro grosseiro em lugares em que não deveriam acontecer)

Se você ouvir alguém dizendo que o Satoshi disse alguma dessas coisas, você deu de cara com alguém que não leu os documentos originais e sucumbiu às posteriores ondas de fake news; ou, pior, que leu, não entendeu, e inventou pra si mesmo que entendeu. Se isso acontecer, vá com jeitinho: as pessoas não gostam de admitir que não sabem, não leram ou não entenderam. O importante é que isso te ajuda a distinguir quem realmente entende do assunto, o que pode ser muito útil para evitar maus investimentos.

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Nota

Os textos e opiniões publicados na área de colunistas são de responsabilidade do autor e não representam, necessariamente, a visão do Suno Notícias ou do Grupo Suno.

Marco Carnut
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